O idílio está nas casas onde não moramos /
O idílio habita lá /
lá nas cabanas escondidas nas sombras /
e lá dentro despacha o seu "habite-se" /
assinada por alguma autoridade pirata /
algum vesgo no poder /
( todos no poder ficam vesgos /
e se tornam piratas /
Até eu hastearia uma bandeira negra /
símbolo do poder humano
com a sociedade da Caveira e os Ossos /
tremulando na brisa pirata dos sete mares
que não anelam ser oito mares ) /
O idílio habita no casebre ao lado da laranjeira em flor /
que exala uma fragrância fresca de noiva /
noiva se casando na flor branca da laranjeira /
entrando na igreja alva /
da flor branca da laranjeira /
vestida de noiva toda de branco /
num vestido de noiva todo tecido com flores de laranjeiras /
nas mãos do artista Marc Chagall /
que sabia ensinar noivas a voar sobre os telhados da aldeia russa /
Mesmo numa humilde casa /
quase arrastando-se com as ervas /
quase ao nível das ervas /
das ervas que sobem e descem pela cabana /
sobem e descem como anjos em escadas /
pela escada de Jacó longe do anil na substancia do céu /
Na velha cabana desprezada /
mora o idílio do olhar /
que planta o idílio lá dentro /
naquela paupérrima casinhola /
onde a natureza e os tijolos já se mesclam /
casebre onde tijolos e outros artefatos já são parte da natureza /
já deixou de ser artefato para ser escada da natureza /
onde o tijolo não é mais artefato produzido por usina social /
graças aos engenhos do tempo /
graças à indústria de silêncio arquitetada no coração do tempo /
com seus moinhos e redemoinhos a mover terras com ares e águas de chuvas /
moinhos de vento à espera do próximo Dom Quixote de La Mancha /
ou de outro peregrino de Assis tão pobre /
tão santo em seu surrão e seus pés calçados por ervas /
a beijar-lhe os pés tão virados no azul celeste /
Casa vestida de ervas /
improvável noiva amarela nas flores bravas /
pequeninas flores amarelas de ervas /
flores engenheiras do tempo /
flores pensativas e filosóficas /
que olham a vida e os transeuntes como o filósofo cínico /
indiferentes, zombeteiras e livres /
livres deste mundo social de escravos /
onde são escravos também os senhores /
e livres o filósofos cínicos /
porque vivem como o cão /
As flores cultivadas /
as flores que os homens tiram a cor /
borram a cor com suas engenharias /
restam belas e perfumadas /
mas vazias como as meretrizes /
e outras mulheres venais /
de triste sina de não-ser /
de deixar de ser o sonho na casa da aldeia interior aos olhos /
a casa na aldeia que só se pode ver de olhos vidrados /
ou fechados até construírem uma ponte de sombra /
entre a realidade estúpida e o arroio de sonho /
que faz tanto barulho na madrugada /
por onde se entra para a aldeia encravada no sonho /
Flores cultivadas pelo homem /
perdem muito da sabedoria originária /
ficam quase estúpidas em cores e formas /
ficam sem perspectivas filosofantes /
tal qual homens que não pensam /
não pensar o seu pensar originário /
Flores domésticas perdem a idéia central que a leva a pensar vegetal /
vegetativamente e vitalmente e livremente /
e assim ficam pendidas na cor pálida /
igual ao homem domesticado /
que esqueceu sua missão /
sua identidade e seu pensamento /
sua liberdade e sua sina /
e por isso vaga como o cão /
o pobre cão doméstico sem bando /
obediente à estupidez humana /
que se vangloria de saber tudo da enciclopédia natural /
e da enciclopédia Britânica com os signos voltados em face ao inglês /
quando não saber sequer o que as flores silvestres sabem /
aquelas pobres e minúsculas flores amarelas do caminho /
que dialoga no vento com a borboleta amarela /
Ai! minhas queridas e cínicas flores do caminho!!! /
Flores filósofas cínicas /
que se guardam do idílio tolo da casa sonhada por fora /
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